terça-feira, 8 de março de 2016

Não é natural


Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam: isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia, 
Numa época em que corre sangue, 
Em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural!
A fim de que nada passe por imutável
Em que o arbitrário tem força de lei.
Bertolt Brecht 

Um dos primeiros ensinamentos que a gente aprende sendo mulher é que as coisas funcionam de um jeito diferenciado. Ensinam você desde criança a ter cuidado com o que veste, a fechar as pernas bonitinho, te condicionam a andar preocupada com a hora e com o que os homens ao seu redor podem estar pensando de você. É paranoia, é doentio, mas o medo é parte ininterrupta da vida da maioria das mulheres desse mundo. Não é medo somente de atrasar o compromisso, de sofrer um assalto: é medo de notarem que você é mulher e, por isso, acharem que você está disponível, é fraca, se tá dizendo não tá querendo dizer sim mesmo assim... 

Esses dias estávamos eu, minha mãe, minha tia e meu tio no carro e em determinado momento da conversa, sobre o preço das fraldas descartáveis, meu tio disse "se ela fosse um menino, poderia andar nu, mas como é menina tem que cobrir". Estávamos falando sobre uma bebê de um ano. Fala? Não fala. Sabe dizer o que quer? Não sabe. Tem consciência do mundo? Não tem. Mas já sofre as limitações de liberdade que ter nascido com uma vagina traz: tem que ser protegida dos homens. E tem um ano. 

Sempre que essas discussões alcançam tal espectro de profundidade, o mais comum é que os argumentos sejam "porque o mundo é assim". O mundo já foi de muitos jeitos: mulher não votava, mulher não dirigia, mulher não tinha para si as portas das universidades abertas. Tudo isso mudou porque gente antes de nós acreditou que o mundo não deveria ser assim. Não é porque as coisas são de um jeito quando eu nasci que elas devem permanecer do mesmo jeito até que eu morra. É isso que eu quero fazer todos que se opõe a lutar vejam, é isso que o poema do Bertolt Brecht, papel de parede do meu celular, me lembra todos os dias: nada é natural e tudo pode ser reconstruído; de velhas concepções outras mais justas podem ser moldadas.

Por isso que mesmo tendo que ouvir gente chata no dia de hoje dizendo que nem todas as mulheres merecem parabéns porque algumas não se comportam como tais (lê-se não são submissas o suficiente), eu tento a maior parte do ano ser didática e defender meu ponto de vista com as analogias que a história nos deu. Porque também achavam as sufragistas uma piada no século XIX, e nem por isso elas deixaram de conquistar todas as coisas que usufruo atualmente. 

O mundo não deve ser esse lugar onde meninas de sete anos trocam sexo oral por água e biscoitos; amigas saem para viajam sem a presença de um homem, são mortas e ainda julgadas por terem vivido com "muita liberdade"; moçambicanas cortam suas genitálias para sair de casa sangrando e assim não serem estupradas (homens não encostam em mulheres "impuras") (conhecer essa realidade foi uma das coisas mais tristes que já li em um livro na minha vida; o livro é Terra Sonâmbula, do Mia Couto). O mundo não deve e o mundo não vai ser, porque eu e metade do planeta estamos nos levantando e lutando. Cada vez mais, vejo meninas pré-adolescentes se interessando pelas discussões e problematizando o "natural". O patriarcado já deu os frutos que tinha que dar, já matou e oprimiu o suficiente: para os séculos seguintes, eu só prevejo mulheres alcançando lugares mais e mais altos. 

Um comentário:

  1. Estou a tentar visitar todos os seguidores do Peregrino E Servo, e verifiquei que eu estava a seguir sem foto, por motivo de uma acção do google, tive de voltar a seguir, com outra foto. Aproveito para deixar um fraterno abraço.
    António Jesus Batalha.

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