quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O sociopata

Escutou um barulho de porta se abrindo vagarosamente, sempre teve bons ouvidos. Mas, espera; lembrou-se que o João não levara a chave.
Levantou-se furtivamente, fazendo o maior silêncio possível. Só podia ser algum bandido, a redondeza estava cheia deles. Deixaria levar tudo, se não desse tempo ligar para polícia. Pensando isso, enfiou no bolso do casaco que estava vestindo seu celular, o qual deixou no chão ao seu lado para conferir a hora enquanto dava um pequeno cochilo – seu último, coisa que ela não poderia imaginar.
Descendo as escadas, ela encontra alguém totalmente improvável. Nem lembraria do seu rosto se não tivesse boa memória, pois só o vira uma única vez, a duas semanas atrás, quando discutiram feio ao ele bater no seu carro e se recusar a pagar pelo prejuízo. Um deplorável machista.
- O que você faz aqui? Como conseguiu entrar aqui? Vá embora ou eu chamo a polícia. 
- Acho que não vai dar tempo para a última opção. 
Não existem palavras para descrever quão grande foi o seu assombro quando viu aquele velhote armado. E com uma faca da sua própria cozinha, que afiara noite passada!
- Espera, o que você quer? O que vai fazer comigo? Podemos conversar.
- Não, nós não vamos. Mas, por generosidade, deixo-lhe um conselho para a próxima vida, caso ela exista - e com um sorriso diabólico nos lábios continuou em tom apreensivo: - Nunca se meta com uma pessoa antes de saber do que ela é capaz, meu bem.
Mal pôde conter o horror que aquelas palavras a causaram. Rapidamente correu para o seu quarto. Mas estava fraca, o sangue latejava em sua cabeça, sentia arrepios e tremores nos membros, tudo rodava. Ela correu o mais rápido que pôde até seu quarto. Contudo, não foi rápida o bastante, não conseguiu fechar a porta, não conseguiu discar o número de alguém no celular, seus dedos não acertavam as teclas. 
- Não, não; isso não pode - tirou o celular da sua mão, abriu-o, tirou o chip e quebrou em pedaços. Depois, com a mesma ignorância, despedaçou o celular pisando em cima dele com aqueles pés malditos. - Tem algo para dizer, princesa? Desculpas, por exemplo?
- Desculpas, seu infeliz? Você estava bêbado, bate no meu carro e vem reclamar que eu não tenho direitos porque sou mulher e você é homem? Duas semanas depois, entra na minha casa, pega uma das minhas facas e diz que vai me matar? Temos um nome para você: sociopata! Você precisa de tratamento.
Ele ri, mas não é uma risada muito agradável. 
- Não me interessa o que você acha de mim, já que vai deixar de achar qualquer coisa daqui a alguns instantes. Mas preciso fazer as coisas direito, não é?
Ele põe no lugar todas as coisas que ela derrubou ao correr desesperadamente, pega um lápis e, na parede, escreve em letras de forma: "EU SINTO MUITO". 
- O que diabos você está fazendo?
- Planejando seu suicídio. 
Ele faz tudo como se já tivesse feito aquilo antes, o que não dá para duvidar que tenha acontecido. Limpa suas digitais da escada e de todos lugares em que pegou, inclusive da faca. Vira-se para ela e, com a maior serenidade do mundo, diz:
- Agora, corte seus pulsos. Só precisa corta um, se isso acalmar mais um pouco você.
- O quê? Você ficou louco? - vociferou, pondo para fora toda a repulsa que sentia daquele homem. Tanta gente no mundo para bater no seu carro, e logo um perturbado mental com sede de sangue o faz.
- Certo. Faço eu, então. 
Ele nem esperou que ela dissesse algo. Com a faca afiada, cortou seu pulso com toda a força. Sua mão pendia quando ele se foi. 
Ela teria segundos? Por quanto tempo ainda conseguiria raciocinar? E quando o João chegasse e a visse morta?
João! Lembrou dele e da briga mais cedo. O que ela dissera? "Tudo é culpa sua". Sim, ela disse! Mas que inferno. Não, ele não iria pensar que ela se matou por causa disso. Eles já brigaram antes... Deus, o que fazer? Teve uma ideia e sentiu repulsa assim que ela veio à sua cabeça, mas não tinha tempo. Tinha que ser.
Seu sangue já se espalhava por quase todo o quarto, mesmo que ela estivesse apertando firme a mão com a blusa. Meteu seu dedo na poça de sangue e escreveu um "n" na parede, seguido de um "ã", "o", "f", "o", "i", "s", "u"...
Não, não, não. Seu corpo precisava de sangue, seu coração precisava de sangue, e ela não o tinha! 
Quando João chegou, tal era o estado do quarto: existia sangue por toda parte, um corpo pendia da cama e, na parede, lia-se: "Não foi su". Uma frase interrompida pela morte.

- Meu senhor, sabe o que possa significar aquela última frase? Achamos que talvez ela quisesse escrever "suicídio". Mas alguém que quer se suicidar muito dificilmente se arrepende, porque geralmente não se tem tempo para isso. É como se ela tivesse se suicidado contra a própria vontade, o que não faz sentido - falou o policial a João, e continuou: - Já temos uma teoria. O suicídio foi planejado. Ela escreveu o "eu sinto muito" na parede e, depois, cortou o pulso. Mas esqueceu de algo, algo que precisava ser dito a qualquer custo. Ela estava fraca e o lápis estava longe, então teve a ideia de escrever com seu próprio sangue, mas não conseguiu acabar. Não faz mesmo ideia do que possa ser?
- Não, seu policial, não faço ideia. E isso acaba comigo...
Quando chegou ao quarto, a primeira atitude de João foi chamar a polícia. Não havia mais jeito para ela, estava morta a algum tempo. Ele sabia que tinha alguma coisa errada! Ligava para o seu celular e escutava que aquele número não mais existia. Ela não ficava sem falar com ele, mesmo quando brigavam. O que foi que ela tinha dito? "Tudo é culpa sua, João. Tudo."
Ele pensou na frase inacabada e, de repente, teve certeza do que ela significava.
- Ei, policial, espere! - gritou quando este já estava para dar partida no seu carro. Depois do acontecido, o policial pediu para João ir para casa e se acalmar que depois passaria lá para alguns esclarecimentos de praxe. - Pensando bem, sei o que ela queria ter escrito.
- Sim?
- Nós brigamos hoje mais cedo, nada grave, brigas normais de casal. Ela me dissera que todos os nossos problemas eram minha culpa. Que ela sempre tinha que consertar o que eu fazia, que sempre tinha que ficar me repetindo as mesmas coisas... - continuou o pobre homem, engolindo o choro: - Tenho certeza que ela queria ter escrito "não foi sua culpa" naquela parede, como um tipo de mensagem para mim. Ela não se mataria por causa de uma briga que tivemos, agora eu tenho certeza e isso me conforta. Não sei o que possa ter acontecido para ela fazer uma coisas dessas, mas pode apostar que deva ter sido muito grave. Desculpa não poder ajudar muito, mas só estávamos juntos há dois meses.
- Seu... - e, olhando nas suas anotações - João, obrigado. Sua dedução bate com os fatos. Qualquer novidades nós o comunicaremos. Não se preocupe, tudo será esclarecido. Tenha uma boa noite.
Boa noite. Disse isso como se fosse possível.
A notícia saiu em tudo que foi jornal. Da manhã, da tarde, da noite. As amigas dela foram entrevistadas. Ela era uma pessoas muito legal, sociável, que ajudava todos. Que pena a sua morte! Não, ninguém sabia o que a fez cometer tal ato. Era uma pessoa de bem com a vida, não usava drogas, não estava com a auto-estima baixa, não apresentou mudanças comportamentais nos últimos dias.
Talvez se uma dessas amigas, uma só, tivesse se lembrado de uma certa discussão com um motorista bêbado a duas semanas atrás, o caso tivesse sido esclarecido. Mas ninguém lembrou, ou, se lembrou, não achou relevante relatar.
Infelizmente, não foi dessa vez que o sociopata teve o que merecia. Estava livre. Livre para beber e bater em carros novamente.

3 comentários:

  1. Uau, chocante o conto. Você escreve muito bem. Sociopatas e psicopatas dão muito medo, mas infelizmente é assim que eles são, super inteligentes para bolar planos malignos e não coisas do bem.

    Garota de All Star

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  2. Que texto mais ousado! Infelizmente, pessoas assim existem e estão muito bem "disfarçadas". Hoje, é difícil confiar num desconhecido na rua porque você não sabe a cara que o mal tem.


    http://osonhodeumaflauta.blogspot.com.br/

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  3. Eu não pude desgrudar os olhos do seu texto por um minuto sequer!
    Já pensaste em escrever um livro, pois?
    És um genio da escrita!
    Seu blogue é fantástico!
    Por favor, siga o meu!
    Ficarei honrada!!!! *
    Beijos princesa <3

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